Mais de 1,7 milhão de ucranianos fugiram de seu país desde o início da invasão pela Rússia, em 24 de fevereiro, segundo dados atualizados das Nações Unidas. Centenas de mulheres, crianças e idosos se amontoam, todos os dias, na estação de trem de Lviv, a maior cidade do Oeste da Ucrânia e ponto final para quem deseja entrar na União Europeia. Por determinação do governo, os homens de 18 a 60 anos não podem deixar o território ucraniano e são obrigados a pegar em armas contra os russos. Por outro lado, há também notícias de que soldados inimigos estariam se rendendo sem resistência — a imagem de um deles chorando ao ligar para a mãe rodou o mundo.
Toda guerra tem muitos lados. Mas há, talvez, um menos visível, que consome por dentro, em silêncio: os efeitos dessas situações extremas na mente, deflagrando, de uma hora para outra, ansiedade, depressão, distúrbios comportamentais e estresse pós-traumático. Os impactos, diretos ou indiretos, da violência de uma guerra são brutais, afirmam especialistas.
— Essas pessoas [os ucranianos] estão passando por um evento traumático incapacitante. É o que chamamos de “estresse tóxico elevado”. Quando o corpo é submetido a um estresse constante, nesse caso a ataques contínuos, bombardeios e insegurança, a frequência cardíaca dispara e diversos tipos de reações químicas no corpo são ativadas continuamente, gerando uma repetida resposta ao estresse corporal — explicou ao GLOBO Theresa Betancourt, professora da Escola de Serviço Social da universidade Boston College e especialista em saúde mental para jovens afetados pela guerra.
A existência de traumas provocados pela experiência de guerra ou de conflito armado são velhos conhecidos até das pessoas comuns — há uma vasta cartela de filmes sobre o assunto, por exemplo, como o popular “Rambo — programado para matar”, de 1982, imortalizado por Sylvester Stallone. Mas não há no campo da psicologia ou da psiquiatria nenhum instrumento capaz de avaliar precisamente o quão profundo é o trauma de uma pessoa ou quais situações são mais traumatizantes que outras nesses contextos, afirma Joop de Jong, professor da Faculdade de Ciências Sociais e Comportamentais da Universidade de Amsterdã e autor do livro “Trauma, War and Violence: Public Mental Health in Socio-Cultural Context” (Trauma, Guerra e Violência: Saúde Mental Pública em Contexto Sócio-Cultural, sem tradução para o português).
— O problema tem dimensões enormes, envolve famílias, comunidades, perdas materiais… Mas o que sabemos pela literatura é que uma das coisas mais dramáticas para as crianças, por exemplo, é quando os próprios pais estão traumatizados — afirma Jong. — A reação de uma mãe ou de um pai ao estresse traumático não tem consequências psicológicas e psiquiátricas apenas para eles, mas também para seus filhos.
Danos biológicos
Segundo Betancourt, a ciência é muito clara quanto às evidências de que a exposição ao estresse tóxico afeta a arquitetura do cérebro em desenvolvimento da criança. Ainda de acordo com a especialista, a situação é agravada se não houver esse papel amortecedor de figuras primárias de apego, como os pais ou outros entes queridos. As consequências, afirma, “são duradouras”, com impactos diretos na saúde mental e nos resultados sociais dessas pessoas, incluindo sua capacidade de se sair bem na escola e economicamente.
Um estudo apresentado em 2019 por pesquisadores norte-americanos dá conta de que passar por uma situação traumática pode, além de comprometer a saúde mental, causar danos biológicos. Eles analisaram a estrutura cerebral de sobreviventes do Holocausto e constataram que o estresse e o sofrimento levaram a uma redução significativa da massa cinzenta dessas pessoas. A diminuição era ainda maior entre as que tinha 12 anos ou menos na ocasião do genocídio, disseram. O estudo revelou também diferenças substanciais nas estruturas cerebrais envolvidas no processamento de emoção, memória e cognição social entre os sobreviventes e indivíduos que não viveram esse trauma.
Num contexto de guerra, os riscos de desenvolvimento de transtornos mentais ou problemas de saúde são elevados, mesmo depois de findado o conflito e alcançada uma sensação de estabilidade de longo prazo, afirma Theresa Betancourt, do Boston College. Em situações como essas, as taxas de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), depressão, abuso de substâncias e ansiedade sobem, às vezes, 30%, segundo Jong.
Entre 50% e 75% das pessoas que viveram uma experiência de guerra também sofrerão com pesadelos constantes, flashbacks do conflito, sensação constante de vigília e atenção, insônia ou ansiedade, afirma o especialista holandês. Todos esses sintomas são enquadrados no que a ciência chama de “reação aguda ao estresse”, que ainda inclui se assustar facilmente com sons abruptos, completa Jong.
No caso de homens adultos, há ainda consequências mais imediatas, como o alcoolismo e o abuso de substâncias.
— O alcoolismo é um problema em qualquer lugar do mundo onde você tenha homens reunidos, especialmente em uma guerra — diz. — É claro que se houver um ataque hoje e outro amanhã, é bom poder beber algo depois para relaxar. Mas se você está sob ataque contínuo, você tende a usar o álcool como uma forma de conviver com o medo e a ansiedade, mas isso facilmente evolui para abuso de substâncias como cocaína, e o abuso de substâncias é sempre um grande problema.
Em muitos casos há também um problema transgeracional. Depois de uma guerra, é muito comum que os pais não falem sobre o conflito, para não expor as crianças às histórias. Mas há também aqueles que falam o tempo todo sobre a guerra. Em ambos os casos, as crianças sentem que não recebem a atenção devida . Também pode ocorrer de os pais nunca serem agressivos com seus filhos, temendo a agressividade da guerra, ou de serem violentos o tempo todo.
— Quando os pais são traumatizados, eles podem traumatizar a próxima geração. Mas o que a próxima geração sofrerá com os traumas dos pais nem sempre é negativo. Às vezes pode gerar um sentimento de resiliência. — afirma Jong. — A narrativa de guerra dos ucranianos, que sofreram por dois séculos nas mãos do Império Russo, da União Soviética, do regime nazista e agora nas de Putin, por exemplo, é a da resistência.
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